Revisão Sistemática – Exc. in Reac. Journal. (Bahia) 1 (1) * out 2025 * 10.5281/zenodo.17419940
MUITO ESTIMULO, POUCO DESENVOLVIMENTO? UMA REVISÃO SISTEMÁTICA SOBRE OS EFEITOS DA HIPERESTIMULAÇÃO NO CÉREBRO INFANTIL
Autores: Julia Dias Bendini; Larissa Soares Leite; Thomaz Santi Vincensi; Lorrane Tallita Santos de Freitas; Isabela Bonilla Benke; Victor Antônio Fernandes Codognio.
RESUMO: O avanço tecnológico, a expansão da mídia digital e a valorização precoce do desempenho cognitivo têm levado muitas crianças a ambientes repletos de estímulos. Brinquedos interativos e telas digitais são frequentemente utilizados com a intenção de acelerar o aprendizado, mas evidências sugerem que essa hiperestimulação pode ultrapassar a capacidade adaptativa do cérebro em desenvolvimento. Avaliar os impactos da hiperestimulação precoce no neurodesenvolvimento infantil. Foi conduzida uma revisão sistemática segundo as diretrizes PRISMA. Foram pesquisadas as bases PubMed/MEDLINE e Scopus entre 2019 e 2025, com descritores relacionados a “sensory overload”, “overstimulation”, “child development” e “brain development”. Trinta e oito estudos foram inicialmente identificados; após análise crítica, sete artigos atenderam aos critérios de inclusão. A hiperestimulação precoce foi associada a maior incidência de desorganização atencional, impulsividade, irritabilidade e dificuldades de regulação emocional. Crianças expostas a ambientes saturados de estímulos apresentaram menor criatividade, baixa tolerância à frustração, sono fragmentado e níveis elevados de estresse fisiológico. Evidências experimentais em animais mostraram alterações neurobiológicas em regiões como amígdala e núcleo accumbens, com prejuízos em memória e aprendizagem. Estudos observacionais identificaram ainda retrocessos no desenvolvimento da linguagem associados ao uso excessivo de telas em menores de cinco anos. A hiperestimulação, longe de promover avanços lineares, pode comprometer funções críticas do neurodesenvolvimento. Estratégias de saúde pública e orientações parentais devem priorizar experiências equilibradas, o brincar livre e vínculos afetivos estáveis, respeitando o ritmo natural da infância.
Palavras-chave: Desenvolvimento Infantil. Neurologia. Transtornos cognitivos.
INTRODUÇÃO:
O desenvolvimento infantil é marcado por um período de intensa plasticidade cerebral, no qual fatores ambientais exercem papel crucial sobre a arquitetura neural e a formação das habilidades cognitivas, emocionais e sociais. A infância inicial, sobretudo os primeiros cinco anos de vida, constitui uma janela crítica para a consolidação de conexões sinápticas que irão sustentar funções executivas, linguagem, memória, regulação emocional e competências sociais ao longo da vida.
Nas últimas décadas, profundas transformações socioculturais alteraram a forma como a infância é vivida. A urbanização, a aceleração do cotidiano, a introdução massiva de tecnologias digitais e a crescente valorização do desempenho precoce resultaram em ambientes repletos de estímulos sensoriais e cognitivos. Brinquedos eletrônicos, televisores, smartphones e aplicativos educacionais estão presentes desde os primeiros meses de vida, muitas vezes substituindo o brincar livre e a interação interpessoal. Além disso, o excesso de atividades dirigidas — como cursos de idiomas, música e reforço escolar em idade pré-escolar — reflete a pressão social por um desenvolvimento acelerado 3
Embora a estimulação adequada seja reconhecida como benéfica para o neurodesenvolvimento, há um limite além do qual a exposição contínua e intensa a estímulos pode configurar hiperestimulação. Esse fenômeno, também descrito como sobrecarga sensorial ou overstimulation, levanta preocupações quanto a potenciais efeitos adversos sobre o cérebro em maturação.
Estudos sugerem que a hiperestimulação está associada a desorganização atencional, impulsividade, irritabilidade, alterações do sono e prejuízos no desenvolvimento da linguagem. Modelos experimentais indicam que a exposição precoce e excessiva a estímulos pode induzir alterações neurobiológicas em áreas-chave como a amígdala e o hipocampo, comprometendo memória, aprendizagem e regulação emocionDiante desse cenário, torna-se essencial sistematizar as evidências existentes para compreender em que medida a hiperestimulação impacta o neurodesenvolvimento infantil, identificando tanto os riscos potenciais quanto as estratégias protetoras que podem mitigar esses efeitos.
O objetivo desta revisão sistemática é analisar e sintetizar as evidências científicas sobre os efeitos da hiperestimulação no neurodesenvolvimento infantil, identificando os impactos de excesso de estímulos sensoriais, cognitivos e digitais sobre funções cognitivas, emocionais e comportamentais, bem como os fatores protetores que podem mitigar esses efeitos.
METODOLOGIA:
Esta revisão sistemática foi conduzida seguindo as diretrizes PRISMA (Preferred Reporting Items for Systematic Reviews and Meta-Analyses). As bases de dados consultadas incluíram PubMed, Scopus, Web of Science, SciELO e BVS, abrangendo estudos publicados entre 2000 e 2025. Foram incluídos estudos originais em inglês, português e espanhol que investigaram o impacto da hiperestimulação sensorial, cognitiva ou digital em crianças de 0 a 6 anos.
Os critérios de inclusão contemplaram: ensaios clínicos randomizados, estudos longitudinais, estudos observacionais e revisões sistemáticas que avaliassem desfechos relacionados a QI, atenção, comportamento, funções executivas, comunicação, habilidades socioemocionais e saúde mental infantil. Foram excluídos artigos sem acesso ao texto completo, relatos de caso isolados e estudos com populações especiais (ex.: crianças com deficiência neurológica pré-existente).
A busca utilizou termos combinados com operadores booleanos, incluindo: “hiperestimulação infantil”, “superestímulo”, “neurodesenvolvimento”, “estimulação cognitiva excessiva”, “dispositivos digitais” e “funções executivas”. Todos os títulos e resumos foram analisados por dois revisores independentes; divergências foram resolvidas por consenso ou por um terceiro revisor.
A revisão sistemática identificou inicialmente 38 artigos, dos quais 7 atenderam aos critérios de inclusão após triagem de títulos, resumos e textos completos. A maioria dos estudos incluídos era longitudinal, com acompanhamento de crianças entre 0 meses e 6 anos, enquanto outros consistiam em ensaios clínicos randomizados ou revisões sistemáticas.
Os dados extraídos incluíram características do estudo (autor, ano, país, desenho), população, tipo de estímulo, instrumentos de avaliação e principais resultados sobre neurodesenvolvimento. A qualidade metodológica dos estudos foi avaliada utilizando escala de Newcastle-Ottawa para estudos observacionais e Cochrane Risk of Bias Tool para ensaios clínicos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO:
Os achados demonstraram que a hiperestimulação infantil, seja por exposição excessiva a estímulos digitais ou por atividades cognitivas intensas, está associada a impactos significativos no desenvolvimento neurocognitivo e socioemocional das crianças. Crianças expostas a estímulos digitais prolongados apresentaram maiores dificuldades de atenção, déficit em funções executivas, menor autorregulação e aumento de comportamentos compatíveis com sintomas de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade 1,2,3,4.
O contexto familiar emergiu como um fator modulador crucial. Crianças cujas famílias apresentavam alta sensibilidade parental e ofereciam estímulos estruturados e de qualidade apresentaram melhor desempenho cognitivo, maior competência socioemocional e autorregulação adequada, mesmo em situações de intensa estimulação. Em contrapartida, ambientes familiares com baixa sensibilidade, práticas parentais desorganizadas ou controle negativo potencializaram os efeitos adversos da hiperestimulação, refletindo em déficits cognitivos, comportamentais e socioemocionais 1,3,5,6,7.
Intervenções combinando estímulos estruturados e suplementação nutricional mostraram resultados positivos, indicando que o impacto da hiperestimulação depende do tipo de estímulo, da qualidade das interações e do suporte ambiental. Ensaios clínicos demonstraram que estímulos isolados, de baixa qualidade ou sem supervisão adequada, não promoviam ganhos significativos e, em alguns casos, aumentavam problemas de atenção. As áreas do desenvolvimento mais afetadas incluíram funções executivas, competências socioemocionais, linguagem expressiva e saúde mental, com aumento de sintomas de ansiedade, irritabilidade e déficit de atenção em crianças vulneráveis 1,4,5.
O nível e a qualidade da estimulação desempenharam papel determinante: crianças expostas a estímulos equilibrados, mediadas por cuidadores sensíveis, mostraram desenvolvimento cognitivo e socioemocional superior em comparação àquelas submetidas à hiperestimulação sem suporte. Diferenças socioeconômicas também se mostraram relevantes, com crianças de famílias de baixa renda ou com menor escolaridade materna sendo mais suscetíveis aos efeitos negativos da hiperestimulação. Evidências de médio e longo prazo sugerem que a exposição precoce a estímulos excessivos em contextos de baixo suporte pode gerar déficits persistentes, incluindo desempenho acadêmico inferior, dificuldades de atenção e problemas de regulação emocional, enquanto a qualidade do estímulo e da interação parental se apresenta como fator protetor essencial para o desenvolvimento infantil 4,5,6,7.
CONSIDERAÇÕES FINAIS:
A hiperestimulação no início da infância exerce efeitos significativos sobre o desenvolvimento cognitivo, socioemocional e comportamental das crianças, especialmente quando ocorre em contextos de baixo suporte familiar ou interação parental inadequada. Embora estímulos estruturados e de qualidade possam favorecer o aprendizado e a autorregulação, a exposição excessiva a múltiplos estímulos, sobretudo digitais, sem mediação adequada, aumenta o risco de déficits de atenção, comprometimento das funções executivas e dificuldades socioemocionais.
Os achados ressaltam a importância de estratégias parentais sensíveis e de ambientes equilibrados, capazes de modular os impactos da estimulação intensa, promovendo desenvolvimento saudável e prevenindo consequências negativas a longo prazo. Além disso, fatores socioeconômicos emergem como moduladores críticos, sugerindo que intervenções direcionadas e educação parental podem ser eficazes para mitigar os efeitos adversos da hiperestimulação. Em síntese, o desenvolvimento infantil é altamente sensível ao tipo, à intensidade e à qualidade da estimulação, e políticas públicas, práticas educativas e orientação familiar devem considerar esses fatores para promover o bem-estar e o potencial cognitivo e emocional das crianças.
Referências
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